Introdução
Com o objetivo de dar amparo jurídico a uma realidade bastante presente na sociedade brasileira e admitida pela jurisprudência, o texto constitucional de 1988, em seu art. 226, § 3º, reconheceu a união estável como entidade familiar, assegurando-lhe especial proteção do Estado. Reconheceu ainda a possibilidade de sua conversão em casamento.
A conversão da união estável em casamento, instituto no qual a celebração é dispensada, foi regulamentada pelo art. 8º da lei 9.278/961 e pelo art. 1.726 do Código Civil2.
A forma administrativa de conversão da união estável em casamento, que se dá mediante requerimento feito pelos conviventes ao Oficial do Registro Civil, não foi disciplinada pelo Código Civil, mas a lei 9.278/96 não foi revogada no que se refere ao procedimento administrativo, razão pela qual, mesmo antes da publicação da lei 14.382, de 27 de junho de 2022, já existia a opção entre a via judicial e a extrajudicial.
A lei 14.382/22 veio disciplinar a conversão extrajudicial da união estável em casamento, alterando a redação do art. 70-A e parágrafos da Lei de Registros Públicos – lei 6.015/73). A conversão deverá ser requerida pelos companheiros perante o oficial de registro civil de pessoas naturais de sua residência e, recebido o requerimento, será iniciado o processo de habilitação sob o mesmo rito previsto para o casamento, devendo constar dos proclamas que se trata de conversão de união estável em casamento. Em caso de o requerimento de conversão ser feito por mandato, a procuração deverá ser pública, uma vez que a manifestação de vontade dos nubentes quanto ao casamento se dá nesse momento, e com prazo máximo de 30 (trinta) dias3.
A lei 14.382/22 também esclarece que, se estiver em termos o pedido, será lavrado o assento da conversão da união estável em casamento, independentemente de autorização judicial, prescindindo o ato da celebração do matrimônio. Já que não há celebração, o registro do referido ato será lavrado no Livro B, sem algumas indicações que são obrigatórias nos demais registros de casamento, quais sejam a indicação da data e das testemunhas da celebração, do nome do presidente do ato e das assinaturas dos companheiros e das testemunhas, devendo constar no respectivo termo que se trata de conversão de união estável em casamento.
Antes da publicação da lei 14.382/22, na maioria dos Códigos de Normas do Extrajudicial dos Estados, a diferença entre o procedimento judicial e o administrativo de conversão de união estável em casamento era que, na forma extrajudicial, havia vedação do reconhecimento da data de início da união estável, o que somente podia ser feito no procedimento judicial.4
A norma de 2022 reconheceu que a conversão em casamento da união estável dependerá da superação dos mesmos impedimentos legais existentes para o casamento civil, sujeitando-se à adoção do regime patrimonial de bens, na forma dos preceitos da lei. De outra parte, foi introduzido o procedimento de certificação da união estável, realizado perante o Oficial de Registro Civil, com o qual se autoriza a constar no assento de casamento a data de início da união estável. É o dois em um: na conversão de união estável em casamento em que é apresentada a certificação da data de início, o casal terá reconhecida e publicizada a união estável, bem como será formalizado e publicizado o casamento.
A lei 14.382/22 definiu, por fim, no § 7º do art. 70-A, que, se estiver em termos o pedido, o falecimento de um dos nubentes no curso do processo de habilitação não impedirá a lavratura do assento de conversão de união estável em casamento. Esse singelo parágrafo tem uma enorme repercussão, cuja análise será objeto deste artigo.
A conversão da união estável em casamento conforme Provimento 149/CNJ
A regulamentação da lei 14.382/22 veio com o Provimento 141/CNJ, hoje compilado no novo Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra) – o Provimento 149/CNJ5. A norma da Corregedoria do CNJ estabelece a possibilidade da conversão da união estável em casamento mediante procedimento administrativo praticamente idêntico ao processo de habilitação para o casamento comum, dispensando apenas a celebração.
Como já antecipado acima, até a publicação do Provimento 141/CNJ, a maioria dos Códigos de Normas das Corregedorias Estaduais previa, como diferença entre o procedimento judicial e o administrativo de conversão de união estável em casamento, a vedação ao reconhecimento da data de início da união estável pela via administrativa, o que somente podia ser feito em procedimento judicial.
Era o que ocorria nos Códigos de Normas de Minas Gerais, do Espírito Santo, da Bahia, do Distrito Federal e do Rio Grande do Sul, por exemplo. Essa restrição não tinha fundamento legal e tampouco estava em consonância com a tendência de desjudicialização. Uma exceção era o Código de Normas do Paraná, que estabelecia, no requerimento apresentado pelos conviventes, a possibilidade de indicação da data do início da união estável, devendo constar a referida data na certidão de casamento.
Com o Provimento 141/CNJ, esse cenário modificou-se, tendo sido consolidada a normatização a partir do art. 549 do Provimento 149/CNJ, a saber:
Art. 549. No assento de conversão de união estável em casamento, deverá constar os requisitos do art. 70 e art. 70-A, § 4.º, da lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, além, se for o caso, destes dados: […]
III – a data de início da união estável, desde que observado o disposto neste Capítulo […]
Os parágrafos 4º e 5º de referido artigo, ademais, regraram, quando do registro do instrumento público declaratório ou de dissolução da união estável, o disposto no parágrafo 6º do art. 70-A da Lei de Registros Públicos:
§ 4.º O registro de reconhecimento ou de dissolução da união estável somente poderá indicar as datas de início ou de fim da união estável se estas constarem de um dos seguintes meios:
I – decisão judicial, respeitado, inclusive, o disposto no § 2.º do art. 544 deste Código de Normas;
II – procedimento de certificação eletrônica de união estável realizado perante oficial de registro civil na forma deste Capítulo; ou
III – escrituras públicas ou termos declaratórios de reconhecimento ou de dissolução de união estável, desde que:
a) a data de início ou, se for o caso, do fim da união estável corresponda à data da lavratura do instrumento; e
b) os companheiros declarem expressamente esse fato no próprio instrumento ou em declaração escrita feita perante o oficial de registro civil das pessoas naturais quando do requerimento do registro.
§ 5.º Fora das hipóteses do § 4.º deste artigo, o campo das datas de início ou, se for o caso, de fim da união estável no registro constará como “não informado”.
Note-se que, por ocasião do registro da união estável, somente será possível indicar data precedente se assim for determinado por ordem judicial ou se realizado o respectivo procedimento de certificação eletrônica. Nos demais casos, a data do início ou do fim da relação corresponderá à data da lavratura do respectivo instrumento público ou à data do requerimento do registro.
A questão da data em que se considera que ocorreu o casamento quando da conversão da união estável em casamento
A conversão administrativa da união estável em casamento é instituto jurídico que prestigia o ditame constitucional, de modo a facilitar, de modo célere e abreviado, o casamento dos conviventes. Surge, no entanto, um grave problema, qual seja: a falta de segurança jurídica no que tange à data que deve ser considerada como de realização do casamento.
Nos casamentos civis, existe a celebração e não há dúvida acerca da data em que os nubentes manifestam, perante o juiz de paz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal. O juiz de paz os declara casados e é assim o que determina o art. 1.514 do Código Civil6. A data relevante é aquela da celebração, a partir da qual os nubentes passam ao estado civil de casados.
Na conversão da união estável em casamento, por sua vez, não há celebração e não há lei disciplinando qual seria a data considerada para fins dos efeitos civis do casamento. Portanto, pode-se indagar: na conversão de união estável em casamento administrativa seriam os conviventes considerados casados a partir da data em que foi feito o requerimento de conversão ao Oficial de Registro ou da data em que lavrado o registro do casamento?
A resposta a essa pergunta gera inúmeras repercussões. Examine-se um caso concreto em que os conviventes apresentam o requerimento de conversão ao Oficial, mas, antes expedida a certidão de habilitação ou mesmo antes do registro da conversão, um deles desiste do matrimônio. Estarão eles casados ou não? Se o entendimento for no sentido de que os efeitos da conversão retroagem à data do requerimento, sim, estarão casados. Já se o entendimento for no sentido contrário, somente serão considerados casados na data do registro de casamento.
Outra situação: se os conviventes apresentam hoje o requerimento de habilitação e a lei vigente estabelece que o regime legal para aqueles que se casam sendo maiores de 70 (setenta) anos é o da separação de bens. Se a lei vier a ser alterada no curso da habilitação, passando o limite de idade a ser de 80 (oitenta) anos, qual será o regime aplicável?
Analisando o disposto pelas leis 9.278/96 e 14.382/22, parece prevalecer o entendimento de que, manifestada a vontade dos nubentes quando iniciado o procedimento administrativo de conversão da união estável em casamento, e estando devidamente habilitados, devem ser eles considerados casados desde a data em que apresentaram o requerimento, gerando o registro efeitos retroativos.
A lei 9.278/96 determina:
Art. 8° Os conviventes poderão, de comum acordo e a qualquer tempo, requerer a conversão da união estável em casamento, por requerimento ao Oficial do Registro Civil da Circunscrição de seu domicílio. (sem grifos no original)
Observe-se que essa lei exige o requerimento ao Oficial e nada mais. E é no requerimento, feito ao Oficial de Registro, que as partes capazes manifestam a sua livre e espontânea vontade de que a união estável seja convertida em casamento, apresentando duas testemunhas. Não há outra oportunidade para manifestação de vontade pelo casal, já que nesse procedimento não há celebração. Apresentado o requerimento por ambos os conviventes ao Oficial de Registro Civil, o requisito previsto em lei para a conversão já terá sido observado.
A lei 14.382/2022, ademais, corrobora o acima defendido ao prever que, em caso falecimento de um nubente no curso da habilitação, não se obstará a lavratura do assento de conversão de união estável em casamento (Art. 70-A, § 7º).
Ora, por não haver celebração, o único momento em que o Oficial de Registro recebe a manifestação de vontade dos conviventes é na data do requerimento: depois dessa oportunidade, não há outro contato entre o Oficial ou seu preposto e os nubentes. Após a assinatura do requerimento, o processo de habilitação terá seu curso e, expedido o certificado de habilitação, em seguida será registrado o casamento. Portanto, o Oficial sequer terá conhecimento de falecimento ocorrido durante o processo de habilitação ou antes do registro. Importante ressaltar que o fato de ocorrer o falecimento após o requerimento é irrelevante, uma vez que a manifestação de vontade já foi feita pelos conviventes e os efeitos do casamento, desde que inexistentes os impedimentos matrimoniais, ocorrem a partir do requerimento.
Situação muito semelhante, em que é admitido efeito retroativo, é o casamento religioso celebrado sem prévio processo de habilitação para casamento. O Código Civil7, nesse caso, retroage os efeitos à data da celebração religiosa, admitindo que, requerida pelo casal a habilitação posteriormente, a qualquer tempo, e não sendo encontrado impedimento, seja registrado o casamento civil. Para a conversão da união estável em casamento, no entanto, falta expressa regulamentação no sentido de que a data de realização do casamento, após o curso do processo de habilitação, é aquela em que houve o requerimento ao Oficial.
Apesar de faltar essa norma expressa, parece-nos que deva prevalecer a interpretação ora apresentada. A data do registro da conversão em casamento será aquele em que realizado o respectivo ato no Livro competente. Por sua vez, a data da conversão em si deveria ser aquela em que firmado o requerimento dos nubentes com vistas a dar o início da habilitação para o casamento. Temos aqui, portanto, dois dados distintos que possuem repercussão jurídica distinta.
Foi nesse sentido que a Corregedoria Geral de São Paulo, no processo CG 747/048, decidiu, com força normativa, a interpretação aqui defendida. No caso concreto, em virtude do falecimento de um dos nubentes antes do registro da conversão da união estável em casamento, foi considerada a data do requerimento como a data de realização do casamento. A ementa está abaixo reproduzida:
REGISTRO CIVIL – Conversão da união estável em casamento – Requerimento regularmente subscrito por ambos os conviventes – Posterior falecimento do varão – Processo de habilitação concluído, com expedição do correspondente certificado – Desnecessidade de celebração e, consequentemente, de assinatura dos cônjuges no assento – Possibilidade de sua lavratura – Ato do Oficial – Pedido submetido, de resto, ao crivo do Juiz Corregedor Permanente – Inteligência do art. 226, § 3º, da Constituição da República e do art. 1.726 do Código Civil – Análise do item 91, com os subitens 91.1 a 91.5, do capítulo XVII das Normas de Serviço da E. Corregedoria Geral da Justiça – Recurso provido – Força normativa, inclusive para que pleitos quejandos sejam sempre submetidos ao Juiz Corregedor Permanente, sem prejuízo do disposto naqueles subitens, enquanto não sobrevier ampla modificação das Normas de Serviço para adaptá-las à nova legislação.
Do inteiro teor da referida decisão são reproduzidos os seguintes excertos, pela pertinência:
Para correto enfoque do tema proposto, cumpre trazer à colação o texto que rege a matéria no plano constitucional e deve servir de norte à interpretação dos dispositivos ordinários que possam ser invocados. Cogita-se da orientação insculpida no parágrafo 3º do art. 226 da Magna Carta, segundo a qual, “para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
O emprego do vocábulo facilitar induz, por óbvio, no que diz respeito às normas concernentes à comentada conversão, ao entendimento menos oneroso para os conviventes, assim como tão consentâneo à singeleza procedimental quanto possível.
[…]
Não faz sentido exigir que os conviventes, transmudados em cônjuges, assinem o assento, uma vez que a legislação pertinente, tratando da conversão da união estável em matrimônio, exige um único e apropriado momento para a manifestação da vontade de ambos: o da apresentação do pedido formal nesse sentido. Desse teor o art. 8º da lei 9.278/96 e, agora, o art. 1.726 do Código Civil.
Eis o que basta. Esta – e não outra – a correta interpretação que merecem as disposições legais e normativas e apreço, por harmoniosa em relação ao comando do parágrafo 3º do art. 226 da Constituição da República, segundo o qual, já se sabe, dita conversão será facilitada pelo ordenamento.
[…]
Aqui o alvo colimado é de constitucional limpidez: facilitar a transformação da união firme em casamento. Daí a exegese que se impõe, com o reconhecimento de que a formulação conjunta do pedido basta para espelhar a vontade, prescindindo-se de solenidade ou celebração e, ipso facto, de comparecimento dos interessados (assim como de testemunhas) para assinatura do assento. Firmará o registrador, tão-somente, ao lavrá-lo como ato de ofício.
O próprio Código Civil, em hipótese semelhante, qual seja a do casamento religioso informalmente celebrado, prevê expressamente a possibilidade de enunciação do consentimento antes da habilitação, ao admitir que, realizada esta a qualquer tempo, registre-se tal matrimônio, com o reconhecimento de efeitos civis (art. 1.516).
Voltando, porém, à hipótese concreta ora em análise, convém observar que em nada altera as conclusões expostas o perecimento do varão.
Aperfeiçoada a manifestação de vontade pela manifestação do requerimento de fls. 8 (devidamente subscrito pelo falecido, que também assinou as declarações de fls. 10 e 11), já cumpridas as providências necessárias à habilitação, com expedição do correspondente certificado (fls. 15), e submetido o pedido ao Juiz (bem como, agora, a esta Corregedoria Geral, concluindo-se pela viabilidade), basta que o Oficial, independentemente de quaisquer solenidades ou formalidades adicionais, pratique o ato administrativo que exclusivamente lhe compete, lavrando e firmando o respectivo assento. Neste deverá, dada peculiaridade do caso, ser anotado o falecimento, nos termos dos arts. 106 e 107 da lei 6.015/73, observando-se reciprocidade em relação ao assento de óbito, para que lá passe a constar a conversão da união estável em matrimônio. (sem grifos no original)
Tendo sido devidamente regulamentadas as regras sobre o falecimento de um dos nubentes, seja na esfera legislativa quanto normativa (art. 70, § 7º, da lei 6.015/73 e art. 552, Provimento CNJ 149/23), a questão que envolve a desistência ou renúncia à conversão parece seguir o mesmo regramento.
Ou seja: a desistência de um dos nubentes não teria o condão de desfazer a manifestação de vontade, uma vez que, para fins dessa modalidade de casamento, ela já teria sido feita no momento do requerimento da habilitação. Se inexistir qualquer impedimento matrimonial, em fase de habilitação, as únicas hipóteses de desfazimento do negócio jurídico matrimonial seriam aquelas da nulidade (efeitos ex tunc), a anulação (efeitos ex nunc) ou o divórcio (efeitos ex nunc). Uma vez devidamente habilitados, com a expedição do respectivo certificado de habilitação, a conversão ao casamento ocorre de per si, isso porque os efeitos do casamento retroagem à data da manifestação de vontade das partes e não à data do registro. A desistência, portanto, somente será plausível se realizada antes de finalizada a habilitação seja porque o certificado ainda não foi expedido ou se verificada alguma causa impeditiva do casamento.
Conclusão
Logo, a Lei de Registros Públicos e o Código de Normas Nacional agora têm regra clara: se não for constatado impedimento no processo de habilitação, consideram-se casados os conviventes na data em que foi feito o requerimento ao Oficial. Mesmo que o art. 70-A, § 7º da LRP e o art. 552 da CNN tenham mencionado somente o caso que envolve o falecimento no curso do processo de habilitação, a regra segundo a qual a data do requerimento deve ser considerada como aquela em que o casamento se concretizou parece ser a melhor interpretação tanto por preservar a vontade das partes quanto por observar o que a lei 9.278/96 determinou.
O entendimento apresentado neste artigo decorre da interpretação das normas vigentes, por não haver regra expressa. Se no caso concreto houver alguma questão que cause dúvidas, a decisão final quanto à data em que se considera realizado o casamento não caberá ao Oficial de Registro, mas sim ao Judiciário.
Apesar da omissão legislativa, não há dúvidas sobre a importância da data do requerimento de conversão de união estável em casamento apresentado pelo casal, por isso sugere-se que o Oficial de Registro faça incluir, tanto no livro quanto na certidão respectiva, a data em que o requerimento foi apresentado. Tal procedimento em nada prejudica as partes e pode facilitar a análise da questão quando de eventual discussão judicial. Observa-se que a solução acima proposta é bastante razoável e garante a segurança jurídica.
Fonte: Migalhas