Artigo – Discricionariedade registral: Por um confronto com as armas da hermenêutica bottegiana

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Neste breve ensaio, pretendemos discorrer sobre a discricionariedade decisória enquanto predadora no plano do Direito Registral e de que maneira a THQ – Teoria Hermenêutica da Qualificação se evidencia como teoria suficiente ao seu enfrentamento.

Comecemos, então, com breves notas contextualizadoras. O registrador de imóveis exerce uma atividade pública em caráter privado, delegada formalmente através de concurso público. Estabelece-se aqui a primeira premissa: o serviço é de titularidade do Estado, e este, por sua vez, delega ao particular o exercício. Portanto, o agir registral se dá sempre em nome do Estado, o que impõe certos compromissos.

A segunda é que o sistema registral pátrio é o de registro de direitos de duplo requisito (título e modo)1, que exige do registrador, ao recepcionar um título, aferir se o mesmo está formalizado de acordo com o Direito. Esse exame pode resultar em uma (i) qualificação positiva, culminando no registro daqueles que foram pactuados de acordo com o ordenamento jurídico ou em (ii) qualificação negativa, onde serão expostos, por escrito e fundamentadamente, os motivos pelos quais se denega o registro, podendo ou não ser passíveis de correção.

Isto posto, ao qualificar um título, entendido que o agir registral é operado em nome do Estado, há um dever de se apresentar uma resposta (correta) ao cidadão que tem a pretensão de ver o seu direito devidamente registrado. No intuito de possibilitar tal pretensão, a decisão que será exarada pelo oficial registrador deve atender parâmetros de adequação ao Estado Democrático de Direito, ou seja, estar fundamentada e ser não-discricionária.

Estabelecido que o registrador decide e, tal qual um juiz, suas decisões criam, modificam e extinguem direitos (reais), reforçamos a ideia de não ser possível conceber que a (ir)registrabilidade de títulos seja aquilo que os registradores digam que é. Há de se estabelecer um mecanismo norteador sobre o decidir, para que este não se torne escolha.

Em quase dois séculos de história do registro predial em terrae brasilis, apenas duas teorias propriamente ditas se estabeleceram acerca da qualificação registral: a teoria do saber prudencial do registrador, de Ricardo Dip, e a teoria hermenêutica da qualificação.2 Sumariamente, o propósito dessas teorias, ainda que sustentadas em paradigmas substancialmente opostos, define-se pela tentativa de fornecer ao registrador um agir estruturado no qualificar dos títulos recepcionados na serventia. Destas, apenas a última será objeto deste lacônico escrito.

Sendo assim, diante da insuficiência das normas jurídicas frente aos casos concretos, pode o registrador escolher a melhor solução a partir do seu livre convencimento? É possível que o juízo registral se sobreponha ao próprio Direito? Os questionamentos são pertinentes na medida em que a redação do Art. 198 da Lei dos Registros Públicos é substancialmente abstrata ao determinar que os registradores devem indicar, por escrito, “exigência a ser satisfeita, se houver”.

Neste aspecto, o agir discricionário se caracteriza(ria) pela escolha (e não decisão) e autoriza(ria), por sua vez, que o registrador selecione uma resposta fundada em suas pré-compreensões. A discricionariedade decisória é muito bem definida por Abel como uma metafórica “cestinha” cheia de “decisões possíveis” e, como a solução demanda uma única decisão, o julgador, exercendo uma prerrogativa voluntarista, escolhe e retira do cesto uma das “decisões possíveis” e descarta as demais.3

Ora, se não existe uma resposta correta em Direito e por isso se escolhe uma entre outras que se apresentam possíveis, presume-se também, por óbvio, que não existe resposta errada. Eis o problema, muito resumidamente, de se adotar uma tese com estas pretensões, em que não há respeito à autonomia que deve ter o Direito.

A ideia de autonomia (do Direito) pressupõe que questões políticas e morais sejam debatidas exclusivamente nos meios próprios para tanto, isto é, nas esferas políticas de decisão.4 Dito de outro modo, a interpretação passa a ser voltada e simultaneamente limitada pelo Direito e não por outros agentes externos.

Dessa forma, se busca construir uma verdadeira blindagem aos predadores endógenos (economia, moral e política) e exógenos (discricionariedade, voluntarismos, etc) do Direito, que, ainda que estejam na base de sua construção, não influenciarão a tomada de decisão porque não podem pretender substituir o Direito posto.5

O risco de permitir perturbações externas – como a situação social do registrador ou os meios de comunicação se tornarem as causas reais da decisão – é metamorfosear em irrelevante saber o que as normas afirmam e em substancial apenas o que os registradores dizem que as normas dizem.6

É neste horizonte – e na contramão de uma espécie de senso comum teórico-registral há muito estabelecido – que nasce a THQ – Teoria Hermenêutica da Qualificação, arquitetada pelo registrador gaúcho Jéverson Luís Bottega e lastreada na CHD – Crítica Hermenêutica do Direito de Lenio Streck, que entende o Direito como um conceito interpretativo e se apoia na viragem ontológico-linguística.

Em virtude dos seus pressupostos teóricos, a hermenêutica registral bottegiana  bebe das fontes de matrizes da própria CHD, quais sejam o pensamento de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer no paradigma da filosofia, e Ronald Dworkin no paradigma jurídico. Não é à toa que a própria concepção da THQ surge em obra denominada “Qualificação registral imobiliária à luz da Crítica Hermenêutica do Direito”.

A principal finalidade da THQ está no enfrentamento ao elemento discricionário que tende a contaminar as decisões tomadas no âmbito da qualificação registral. A discussão que aqui se levanta é muito bem sintetizada por Bottega nos seguintes termos:

[…] o direito à obtenção de respostas corretas também se aplica ao cidadão que se dirige ao registro de imóveis com o objetivo de que o registrador lhe diga (através da qualificação registral) se o direito, formalizado em um título, está apto a ingressar no registro a fim de gerar os efeitos que lhe são próprios. Assim, é inadequado, para falar o mínimo, que se admita que os registradores não mantenham a coerência entre as suas decisões, ora acatando um título, ora rejeitando-o, sob as mesmas circunstâncias, sem fundamentar a ruptura, ou que cada registrador decida com base em critérios não jurídicos, que desrespeitam a autonomia do Direito. Isso porque, só é possível falar em resposta correta se a autonomia do Direito for reconhecida.7

Para tanto, o autor apresenta oito etapas para estruturar a qualificação registral. São elas a análise preliminar, o saneamento, a verificação da validade do fato jurídico inscritível (e sua aptidão para produzir eficácia), as especialidades objetiva e subjetiva, a especialidade do fato jurídico inscritível, os requisitos extrarregistrais e a decisão fundamentada. Com efeito, a proposição de etapas apresenta mecanismos de controle às manifestações arbitrárias que pode(ria)m ocorrer ao qualificar um determinado título.

Além da qualificação de modo faseado – e já compreendido que é o Estado quem legitima a atuação do registrador de tutelar direitos (privados) relacionados à propriedade – Bottega aduz que A circunstância de a Lei 6.015/73 não ter um dispositivo semelhante ao art. 489 do CPC. (thq rdi p. 85), que estabelece a fundamentação como elemento da sentença, não serve de justificativa para que os registradores sintam-se autorizados a praticar atos em fundamentá-los. Isso porque a exigência de motivar as decisões decorre tanto da estrutura dos atos administrativos quanto da responsabilidade política de um registrador em um Estado Democrático […] que evitará o encobrimento de discricionariedades e permitirá que se exerça controle sobre as decisões […].8

Compreendida a estrutura jurídica do Registro de Imóveis, é preciso também definir a sua intencionalidade. Ao interpretar, o registrador deve compreender e observar o point do registro predial, que Bottega define como o registro de direitos reais, direitos obrigacionais com efeitos reais e outras situações jurídicas previstas em lei.9 Logo, direitos que não estejam abarcados pelas hipóteses acima não serão registrados, sob pena de gerar falsa presunção de oponibilidade para com terceiros que não participaram do negócio jurídico.

Pelo exposto, não há dúvidas que o agir do registrador deve estar alicerçado em uma teoria que permita a promoção de decisões íntegras e coerentes, por ser este um eixo substantivo à segurança jurídica que se espera dos registros públicos. Aliás, não deve(ria) ser possível conceber uma atuação que não esteja orientada por teorias que forneçam critérios suficientes para nortear o agir registral. Isso porque já resta superada a ideia de separabilidade entre teoria e prática, uma vez que uma é condição de possibilidade da outra.10

Deste modo, temos que a paradigmática THQ funda uma nova escola de pensamento registral que não mais admite uma “tranquilidade tentadora” (para se utilizar de uma linguagem heideggeriana), isto é, uma espécie de habitus onde os pré-juízos dos registradores tornam a atividade refém da quotidianidade.11 Há de se compreender os compromissos teóricos assumidos ao se adotar determinada teoria e também as consequências decorrentes desta adoção.

Por fim, a dificuldade de realizar determinada tarefa não pode servir de fundamento para não fazê-la, sobretudo naquela que é a principal atribuição do registrador e viabiliza o cumprimento de diretivas constitucionais e direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito.

1 A exigência de duplo requisito ocorre porque, para que um seja possível o registro de um direito real, deve haver um título, e.g. uma escritura pública, e esta, por sua vez, deverá ser registrada no registro de imóveis competente. É neste sentido que dispõe o Art. 1.227 do Código Civil.

2 Há também a ‘teoria da legalidade’, de Afrânio de Carvalho, que não será objeto do presente escrito por não se tratar de uma construção que objetivava ser teoria com maiores pressupostos jurídico-filosóficos.

3 Abel, Henrique. Epistemologia Jurídica e Constitucionalismo Contemporâneo. Ed: Lumen Juris, 2022. p. 76.

4 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Ed. – Belo Horizonte: Coleção Lenio Streck de Dicionários Jurídicos; Casa do Direito, 2020. p.32

5 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Ed. – Belo Horizonte: Coleção Lenio Streck de Dicionários Jurídicos; Casa do Direito, 2020. p.26

6 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Ed. – Belo Horizonte: Coleção Lenio Streck de Dicionários Jurídicos; Casa do Direito, 2020. p.382

7 Bottega, Jéverson Luís. Teoria hermenêutica da qualificação registral imobiliária. Revista de Direito Imobiliário. vol. 95. ano 46. p. 85. São Paulo: Ed. RT, jul.-dez. 2023.

8 Ibid.

9 Bottega, Jéverson Luís. Qualificação registral imobiliária à luz da crítica hermenêutica do direito: equanimidade e segurança jurídica no registro de imóveis. Brasil, Conhecimento Livraria e Distribuidora, 2021. p. 186.

10 Neste sentido, ver “A função social da Teoria do Direito”.

11 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Ed. – Belo Horizonte: Coleção Lenio Streck de Dicionários Jurídicos; Casa do Direito, 2020. p.408-409.

Fonte: Migalhas

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