Artigo – Inseminação artificial caseira: Desafios e consequências jurídicas

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Por Fernando Salzer e Silva

A inseminação artificial caseira, embora popular, carece de regulamentação e esclarecimento das suas consequências jurídicas, urgente para a proteção das famílias formadas.

A CF/88, com fundamento nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade e da maternidade responsáveis, garante a todos os casais, conjugais ou parentais, heteroafetivos ou homoafetivos, o livre planejamento familiar1, sendo também dever constitucional do Estado promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação2.

Reforçando tal garantia constitucional, o atual CC prevê, em seu art. 1.513, que é defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família.

No que se refere ao planejamento familiar, com a constante e ligeira evolução da ciência, principalmente da medicina, hoje existem disponíveis várias técnicas de reprodução assistida. Entretanto, no Brasil, ainda não há lei específica regulando tais procedimentos, sendo a regulamentação existente composta por normas infralegais, expedidas pelo CFM – Conselho Federal de Medicina, resolução CFM 2.320/22, e pela Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária, resolução Anvisa 771/22.

Além das técnicas de reprodução assistida regulamentas pelo CFM e pela Anvisa, vem ganhando popularidade a técnica denominada inseminação artificial caseira.

A Anvisa, apesar de alertar para os riscos da inseminação artificial caseira, assim explica tal método:

A prática envolve basicamente a coleta do sêmen de um doador e sua inseminação imediata em uma mulher com uso de seringa ou outros instrumentos, como cateter.

A prática é normalmente feita entre pessoas leigas e em ambientes domésticos e hotéis, ou seja, fora dos serviços de Saúde e sem assistência de um profissional de Saúde.3

Apesar dos riscos e de não haver qualquer regulamentação legal ou infralegal a respeito da inseminação artificial caseira, recentemente o STJ se posicionou no sentido de que tal forma de reprodução, à luz dos princípios constitucionais, é protegida pelo ordenamento jurídico brasileiro, conforme consta a seguir:

Conquanto o acompanhamento médico e de clínicas especializadas seja de extrema relevância para o planejamento da concepção por meio de técnicas de reprodução assistida, não há, no ordenamento jurídico brasileiro, vedação explícita ao registro de filiação realizada por meio de inseminação artificial “caseira”, também denominada “autoinseminação”. Ao contrário, a interpretação do art. 1.597, V, do CC/2002, à luz dos princípios que norteiam o livre planejamento familiar e o melhor interesse da criança, indica que a inseminação artificial “caseira” é protegida pelo ordenamento jurídico brasileiro.4

Outros Tribunais, como o TJ/SP, possuem o mesmo entendimento que o STJ.

Dupla maternidade. O fato de não existir regramento que ampare a inseminação artificial caseira não pode servir como fundamento para que as famílias originadas deste procedimento sejam impedidas de receber proteção jurisdicional. Em atenção à dignidade da pessoa humana e no princípio do pluralismo das entidades familiares, patente o cerceamento de defesa, diante da manifestação das autoras na produção de provas pertinentes ao deslinde da questão.5

Merecendo a inseminação artificial caseira proteção do ordenamento jurídico, é necessário e urgente que também sejam delimitadas as consequências jurídicas resultantes de tal prática, que, como já dito, não encontra qualquer regulamentação legal ou infra legal.

Como explicado pela Anvisa, tal prática se caracteriza por uma doação de sêmen, ou seja, um contrato atípico6, consciente, gratuito e na maioria das vezes verbal, que deve ser interpretado estritamente7, conforme o princípio da boa-fé8.

Deste modo, nascida a criança fruto da inseminação artificial caseira e efetuado o seu registro de nascimento9, ninguém poderá vindicar qualquer estado contrário ao que resultar de tal registro, uma vez que em tal situação contratual consciente não há que se cogitar de erro ou falsidade do registro10.

Por fim, cabe destacar que caso no futuro haja o conhecimento ou reconhecimento da ascendência biológica do doador do sêmen, tal fato não importará no reconhecimento do vínculo de parentesco e dos respectivos efeitos jurídicos entre o doador e a pessoa gerada por meio da inseminação artificial caseira, devendo ser aplicada, por analogia, a regra contida no §3º, do art. 513 do provimento CNJ 149/23.

Provimento CNJ 149/23:

Art. 513. Será indispensável, para fins de registro e de emissão da certidão de nascimento, a apresentação dos seguintes documentos:

(…)

§ 3.º O conhecimento da ascendência biológica não importará no reconhecimento do vínculo de parentesco e dos respectivos efeitos jurídicos entre o doador ou a doadora e o filho gerado por meio da reprodução assistida.

__________

1 Constituição Federal: art. 226.  A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (…). § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

2 Constituição Federal: Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (…). IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

3 https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2018/inseminacao-artificial-caseira-riscos-e-cuidados

4 STJ. REsp n. 2.137.415/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15/10/2024, DJe de 17/10/2024.

5 TJSP. Apelação Cível 1012498-46.2023.8.26.0248; Relator: Silvério da Silva; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Privado; Foro de Indaiatuba – 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 30/07/2024; Data de Registro: 30/07/2024.

6 Código civil: Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.

7 Código Civil. Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.

8 Código Civil. Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

9 Código civil: Art. 1.603. A filiação prova-se pela certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil.

10 Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.

Fernando Salzer e Silva: Advogado, consultor e parecerista, especialista em Direito de Família pela FMP/RS, Procurador do Estado de Minas Gerais e membro do IBDFAM.

Fonte: Migalhas

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