Imagine que no inventário e partilha de uma pessoa falecida, o cônjuge ou companheiro sobrevivente, que tenha pelo regime de bens, direito à meação, ao invés de ficar com a sua metade ideal sobre cada bem do acervo patrimonial ou com a integralidade de determinados bens, seja a ele atribuído o usufruto dos bens deixados pelo falecido em pagamento de sua meação, enquanto a nua-propriedade seja atribuída em pagamento dos quinhões hereditários dos herdeiros. Essa organização jurídica seria possível? Quais são os impactos patrimoniais, sucessórios e tributários dessa partilha?
O usufruto, como um direito real autônomo, reflete expressivo valor econômico. Aquele que detém o usufruto possui os atributos de usar e fruir do bem, sendo titular do direito de posse, uso, administração e percepção dos frutos (art. 1.394, CC/02).
Por ser assim um direito real destacável da nua-propriedade e com valor econômico próprio, entende-se possível que se amolde à meação do cônjuge ou companheiro sobrevivente em pagamento do que lhe é cabível no monte patrimonial deixado pelo falecido.
Essa organização patrimonial e estratégica no inventário de uma pessoa falecida acaba sendo muito desejada por aqueles que pretendem já realizar um planejamento patrimonial e sucessório, evitando assim um futuro inventário da viúva/viúvo sobre esses bens recebidos e, consequentemente, novas cobranças de impostos.
Isso porque, o cônjuge ou companheiro sobrevivente, ao ser titular apenas do direito real de usufruto, com o seu falecimento, será necessário apenas um ato de mera averbação de cancelamento deste direito registrado na matrícula do imóvel, consolidando-se automaticamente a propriedade plena aos herdeiros nu-proprietários, independentemente da realização de novo inventário e partilha dos bens.
Eis aqui, portanto, uma simbiose jurídica entre planejamento sucessório e inventário.
Pois bem. O pagamento da meação do cônjuge ou companheiro sobrevivente com o usufruto dos bens imóveis deixados pelo falecido, enquanto a nua-propriedade é partilhada entre os herdeiros, é um assunto bastante discutido nos seus aspectos cíveis e tributários.
Nos procedimentos de inventário, seja ele judicial ou extrajudicial, a partilha pode assumir algumas conformações, quais sejam: (I) os bens deixados pelo falecido podem ser distribuídos de forma que todos os envolvidos fiquem em condomínio sobre partes ideais de cada bem, na proporção do que é meação e do que é quinhão hereditário de cada um – assim deve ser feito nos inventários extrajudiciais quando há herdeiros menores ou incapazes, nos termos do art. 12-A da resolução 35 do CNJ ou (II) é possível atribuir cada bem em sua integralidade para pagamento da meação e dos respectivos quinhões hereditários de cada herdeiro, evitando-se o tão conflituoso condomínio civil, que segundo os Romanos seria a “mãe da discórdia”.
Esse último formato de partilha dos bens no inventário encontra respaldo Legislativo no CPC, mais especificamente nos arts. 648 e 649 do CPC. Admite-se, portanto, que cada um dos envolvidos no inventário, seja meeiro, seja herdeiro, fique com a totalidade de determinados bens como pagamento da parte que lhes cabe da herança.
Segundo o CPC, na instrumentalização da partilha é importante se atentar a máxima igualdade, comodidade e prevenção de litígios (art. 648 do CPC), razão pela qual a partilha com atribuição da integralidade dos bens em pagamento da quota parte de cada um configura verdadeiro incentivo legislativo.
Ocorrendo, portanto, o falecimento de um dos cônjuges ou companheiro, é no procedimento de inventário e partilha de bens que será especializada a meação do cônjuge ou companheiro sobrevivente, o que pode ocorrer em parte ideal dos bens, em um só bem, móvel ou imóvel na sua integralidade, ou até no usufruto dos bens. Lembrando que o meeiro já é proprietário de metade dos bens em decorrência do próprio regime de bens, de modo que o processo de inventário servirá apenas para especializar e atribuir aqueles bens ou direitos que serão utilizados em pagamento desta meação.
Alguns Estados, inclusive, já possuem previsão expressa sobre a possibilidade de atribuir o usufruto em pagamento da meação do cônjuge ou companheiro sobrevivente nos seus próprios Códigos de Normas, a exemplo do Rio Grande do Sul1 e Santa Catarina2.
Já o Estado de São Paulo, apesar de não ter previsão expressa no Código de Normas, possui inúmeras decisões judiciais e administrativas permitindo que o usufruto seja atribuído em pagamento da meação em inventário3, sob o fundamento de que: “A meação, enquanto não especificada, pela morte ou separação do cônjuge, é um direito inespecífico, sendo possível a sua especificação nos direitos de usufruto entre partes maiores e capazes.”
Em termos práticos, se Pedro, casado com Maria no regime da comunhão parcial de bens, pai de Ana (que é filha comum do casal), vem a falecer deixando no seu acervo patrimonial uma casa de R$ 600.000,00, caso Maria no inventário fique apenas com o usufruto da casa e Ana com a nua-propriedade desta, quando Maria vier a falecer, essa casa não será inventariada, pois simplesmente será averbado o óbito e extinto o usufruto, consolidando-se a propriedade plena do imóvel a Ana. Basta, portanto, mero ato de averbação na matrícula.
Veja a economia tributária que permeia essa formatação de partilha. Com o falecimento da usufrutuária, Maria, esses imóveis consolidam-se na propriedade da Ana, sem qualquer inventário e incidência de imposto causa mortis.
Fato é que essa conformação de partilha não é aceita, ou até mesmo é desconhecida, em alguns Estados. Além disso, há uma grande discussão tributária sob o aspecto do Imposto de transmissão causa mortis e doação.
Os fiscos de alguns Estados interpretam essa conformação jurídica no inventário como atos de disposição que configuram fatos geradores distintos do imposto de transmissão causa mortis e doação, são eles: (I) transmissão da herança aos herdeiros, sob o qual recai o imposto de transmissão causa mortis; (II) ato de cessão gratuita da parte da meeira aos herdeiros, com reserva de usufruto, sob o qual recai o imposto sobre doação e (III) instituição gratuita do usufruto relativo à parte da herança recebida pelos herdeiros em favor da meeira, sob o qual incide imposto de transmissão gratuita de direito. Nesse sentido, a circular 525 de 26/11/24 expedida pela Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Santa Catarina.
Em São Paulo, a posição do fisco quanto ao ITCMD incidente nessa estruturação da partilha é diferente. Como há na lei paulista previsão, para fins de base de cálculo deste imposto, de que o usufruto corresponde a 1/3 do valor do bem e a nua-propriedade corresponde a 2/3 do valor do bem (art. 9º, §2º, lei Paulista 10.705/00), esses valores são considerados como parâmetros para fins de cálculo da partilha em que é utilizado o direito real de usufruto do bem como pagamento da meação.
Veja, no exemplo acima, o patrimônio total deixado por Pedro soma R$ 600.000,00 (composto por uma casa). Tendo Maria meação sobre este bem, pois casada no regime da comunhão universal, a sua meação corresponderá ao valor de R$ 300.000,00. Se Maria, na partilha, ficar com o usufruto deste imóvel, segundo a legislação paulista, ela estará recebendo 1/3 do valor do bem em pagamento de sua meação (1/3 de R$ 600.000,00 = R$ 200.000,00) e a herdeira Ana estará recebendo 2/3 do valor do bem ao receber a nua-propriedade desse imóvel em pagamento do seu quinhão hereditário (2/3 de R$ 600.000,00 = R$ 400.000,00).
Ou seja, para o fisco paulista, essa distribuição dos bens na partilha é possível e reconhecida juridicamente, sendo que nesse caso específico, teremos apenas dois fatos geradores do imposto, são eles: (I) transmissão da herança a herdeira Ana, sob o qual recai o imposto de transmissão causa mortis e; (II) cessão gratuita de meação pela diferença de valores entre aquilo que a meeira deveria receber a título de meação (R$ 300.000,00) e aquilo que ela efetivamente recebeu com o pagamento do usufruto (R$ 200.000,00), equivalente a um ato de doação aos herdeiros dessa diferença de valor (R$ 300.000,00 – R$ 200.000,00 = R$ 100.000,00), sob o qual recai o imposto de transmissão por doação.
Fato é que, em São Paulo, se não houver qualquer excesso de meação ou de quinhão hereditário, como no caso acima exposto, não haverá esse segundo fato gerador do referido imposto. Se, por exemplo, houvesse outro(s) bem(s) no acervo patrimonial do falecido Pedro, cujo valor fosse de R$ 100.000,00, e este(es) fosse(em) integralmente atribuídos em pagamento da meação da meeira, não estaria configurada uma partilha desigual, pois no contexto da distribuição patrimonial na partilha, todos receberiam ao final o valor exatamente que lhes era devido, afastada, portanto, a incidência tributária sobre o excesso de meação ou de herança.
Um cuidado, contudo, que se deve ter é quanto a cobrança de ITCMD na extinção do usufruto. Alguns Estados possuem previsão expressa pela incidência do ITCMD quando da extinção do usufruto, a exemplo do RS4. Outros, como o estado de São Paulo, veda referida cobrança, sob o fundamento de que a extinção do usufruto não configura fato gerador do ITCMD, pois não se trata de um ato de transmissão causa mortis e nem por doação5. Esses entendimentos estaduais precisam ser analisados e avaliados para estruturação dessa formatação de planejamento sucessório, pois o que pode ser uma economia em determinados Estados, em outros, o efeito pode ser reverso, onerando a distribuição patrimonial daquela família.
Outro aspecto de reflexão é quanto ao direito à legítima dos herdeiros exclusivos do cônjuge sobrevivente, que terá sua meação paga com o usufruto, pois uma vez atribuindo o direito real de usufruto em pagamento da meação desse viúvo/viúva, seus herdeiros exclusivos (que não são também do falecido) ficarão sem o direito de receber na herança futura desse viúvo/viúva a parte que lhes caberia referente a esses bens.
Como mencionado acima, com o falecimento do usufrutuário (viúvo/viúva), o usufruto será cancelado e a propriedade desses bens se consolidará automaticamente aos nu-proprietários (herdeiros do primeiro falecido), sem que esses bens integrem o inventário desse viúvo/viúva. Consequentemente, seus herdeiros exclusivos nada receberão desses bens sob os quais o viúvo/viúva detinha meação.
Veja, portanto, que a estruturação de um planejamento sucessório não é uma tarefa simples, exige uma análise ampla e aprofundada sob diversas vertentes do direito e suas consequências jurídicas. A utilização do direito real de usufruto como pagamento da meação atribuída e especializada no inventário nos parece ser de fato uma atrativa conformação jurídica de partilha, evitando um condomínio civil sobre os bens e estruturando já, no mesmo ato, um planejamento sucessório e patrimonial dentro dos parâmetros legais.
Se de fato é uma boa solução, isso só será possível apurar de acordo com o caso concreto.
Fonte: Migalhas