Artigo – Registro civil como garante dos direitos humanos e fundamentais e do Estado democrático

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A tese que aqui se sustenta é que o direito ao registro civil das pessoas naturais se trata tanto de um direito humano quanto de um direito fundamental. Antes de avançar, contudo, convém registrar que o presente texto resultou de uma conferência ministrada pelo autor em Congresso de Registradores Civis, em Maceió, em setembro deste ano, ademais de se lançar um olhar sobre o que dizem algumas constituições e documentos internacionais, a começar por constituições de outros países.

Na perspectiva do Direito Constitucional estrangeiro, embora a heterogeneidade dos textos localizados, em caráter meramente ilustrativo, lista-se as seguintes experiências:  A Constituição de El Salvador, no seu artigo 36, dispõe que “Os registros do Registro Civil não indicarão nenhum sinal (qualificação) da natureza da união, nem as certidões de nascimento expressarão o estado civil dos pais” A Carta Política da República Dominicana, por sua, vez, artigo 55, nº 8, prescreve:

“Toda pessoa tem direito, desde o seu nascimento, a ser inscrita gratuitamente no registo civil ou no livro de estrangeiros e a obter os documentos públicos que comprovem a sua identidade, nos termos da lei”. No continente Africano, a Constituição do Quênia, no Artigo 12, nº 1, b, dispõe que “Todos os cidadãos têm direito a um passaporte queniano e qualquer documento de registro ou identificação emitido pelo Estado aos cidadãos”.

Na esfera do Direito Internacional, registra-se o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), o qual, no artigo 24, 2, reconhece que “Toda criança deve ser registrada imediatamente após o nascimento e deve ter um nome”. A Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), por seu turno, artigo 7, refere que “A criança deve ser registrada imediatamente após seu nascimento e, desde o momento do nascimento, terá direito a um nome, a uma nacionalidade e, na medida do possível, a conhecer seus pais e ser cuidada por eles”. No tocante aos sistemas regionais de proteção dos Direitos Humanos, assume relevo a Opinião Consultiva 24, da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CiDH), que consolida a interpretação de que a mudança de nome e sexo no registro civil de acordo com a identidade de gênero autopercebida são direitos garantidos Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Já a Carta Africana dos Direitos e Bem-Estar da Criança (1990), artigo 6º, prescreve que “Toda a criança deve ser registada imediatamente logo depois do seu nascimento”.

No caso do Brasil, a Constituição de 1988, no seu artigo 5º, LXXVI, dispõe que “são gratuitos para os reconhecidamente pobres, na forma da lei: a) o registro civil de nascimento; b) a certidão de óbito;

Resulta, portanto, relativamente evidente que, seja pela sua previsão textual na CF, seja pela ratificação e incorporação dos tratados internacionais referidos, pelo menos para a ordem jurídico-constitucional brasileira, o direito ao registro civil das pessoas naturais é de fato tanto um direito humano, quanto um direito fundamental.

De qualquer sorte,  independentemente mesmo de uma previsão constitucional expressa, seria perfeitamente possível (e mesmo cogente) reconhecer a existência de um direito fundamental implicitamente positivado, com apoio no artigo 5º, § 2º, da CF, que abarca os direitos decorrentes do regime e dos princípios da Constituição e os constantes dos tratados internacionais, com destaque para o fato de que o registro civil opera como uma garantia da  própria identidade pessoal e, nessa linha, da dignidade da pessoa humana e do acesso à cidadania.

Gratuidade e proteção do direito

Uma primeira questão a enfrentar é se o direito ao registro civil (nascimento e óbito) se limita, quanto à sua titularidade, como sendo um direito apenas dos pobres, no sentido de um direito dos reconhecidamente pobres a um registro civil gratuito de nascimento e óbito. Isso, contudo, não faz sentido. Em primeiro lugar, porque todos e não apenas os pobres são titulares dos direitos humanos. Segundo, porque mesmo no plano dos direitos fundamentais vige como regra a titularidade universal. Afirmar que existe um direito fundamental de registro civil gratuito para os pobres não equivale a negar um direito ao registro aos demais.

O que muda, assim como em relação a outros direitos, é que a gratuidade é um direito e garantia dos menos favorecidos. Do contrário, um registrador poderia se negar a registrar alguém simplesmente por não gostar da pessoa, por preconceito étnico-racial, religioso, ideológico ou em virtude de determinada orientação sexual, embora nesses casos, ter-se-ia também uma violação do princípio da igualdade por conta de discriminação arbitrária.

Portanto, é possível falar em um direito fundamental de todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país a um registro civil de nascimento e óbito, ou outras modalidades que eventualmente sejam obrigatórias e em relação às quais a pessoa não tem a possibilidade de optar. Trata-se, portanto, de um direito subjetivo constitucionalmente assegurado.

Mas não é só. Na dimensão objetiva, para além da perspectiva individual subjetiva, o Estado tem um dever vinculante de proteção desse direito, dever este que vincula todos os órgãos estaduais, no sentido de assegurarem a máxima eficácia e efetividade a este direito, cada ator estatal no âmbito de suas competências e atribuições. Tal dever de proteção, por sua vez, implica a criação e manutenção de estruturas organizatórias e procedimentais adequadas de assegurar a efetividade do direito.

Nessa perspectiva calha referir o exemplo da atuação do Conselho Nacional de Justiça, que já tomou várias iniciativas envolvendo a matéria, como é o caso do Provimento nº 73/2018, que considera a Opinião Consultiva 24, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, para dispor sobre a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais, sem a necessidade de cirurgia de redesignação sexual, autorização judicial ou laudos médicos. Da mesma forma o Provimento nº 83/2019, que trata da paternidade socioafetiva, incluindo disposições sobre o registro civil. O Provimento nº 17/2012 altera o Provimento nº 13/2010, para dispor sobre a emissão de certidões de nascimento nos estabelecimentos de saúde que realizam partos.

Já o Provimento nº 177/2024 versa sobre a regulamentação do procedimento para restauração e suprimento de registro civil diretamente nos Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais, incluindo atualizações sobre o procedimento de registro tardio de nascimento. Tais iniciativas não excluem outras, seja do próprio CNJ (como é o caso, mais recente, dos Provimentos 140/2023 e 199/2025), seja de outros órgãos.

No âmbito da assim chamada dimensão objetiva, a instituição Registro Civil das Pessoas Naturais é também protegida constitucionalmente. Para dar um exemplo, ainda que improvável, uma reforma constitucional ou lei que viesse a abolir ou mesmo esvaziar os registros sem substitutivo similar seria manifestamente inconstitucional. O mesmo se aplica a uma emenda constitucional que viesse a acabar com a com a gratuidade para os necessitados ou uma lei que obrasse no mesmo sentido. Tudo isso em homenagem ao princípio constitucional da proibição de retrocesso.

Além disso, na esfera de seus deveres de proteção, o Estado deve assegurar, dentre outros aspectos, 1 – uma estrutura adequada para os registros civis; 2 – uma compensação financeira igualmente adequada para os oficiais e serventuários; 3 – garantia de acesso adequado à população em termos de distribuição geográfica e logística.

Outro tópico a ser minimante explorado, é que embora seja um direito fundamental autônomo, de aplicabilidade imediata e cláusula pétrea, o registro civil é também um direito/garantia de natureza instrumental, essencial para a proteção de outros princípios e direitos fundamentais, porquanto 1 – integra de certo modo a identidade pessoal podendo até mesmo se cogitar de sua inclusão na lista dos direitos da personalidade. A certidão de nascimento, o nome, são um passaporte existencial de inserção social; 2 – é essencial para a segurança jurídica e pessoal, mas também para a seguridade social e segurança pública; 3 – é um direito que tem ligação com o exercício efetivo da própria cidadania, incluindo os direitos políticos.

Portanto, é possível afirmar que o reconhecimento de um direito fundamental ao registro civil acaba também sendo um elemento indispensável, dentre outros, para o próprio Estado Democrático de Direito.

Ingo Wolfgang Sarlet: é advogado e professor titular da PUC-RS.

Fonte: Conjur

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